28/09/2009

Páupero

Hoje sinto-me esquisito... Parece que já não sei ao que ando, nem para onde vou. O que sinto não pode sequer comparar-se à longa travessia do deserto que fazem os touaregues, pois esses, ainda que não todos, apesar de fazerem de sua casa qualquer recanto que os abrigue, têm quem os acompanhe ou quem os espere. Na sua jornada difícil, idêntica à dos que enfrentam as filas de transito para ir trabalhar, ou de quaisquer outros que diariamente lutem para levar o pão para sua casa, carregam consigo a imagem aa face que se iluminará num sorriso ao ver a sua silhueta, desfocada pelo calor abrasador, a chegar, ao longe.
Sinto-me antes como um barco à deriva, perdido numa maré de ondas altas que até sou capaz de cruzar, mas sem propósito algum em fazê-lo, pois sei que apenas irei encontrar outro mar, nada mais...

Já não vejo os meus filhos há várias semanas e temo que não sintam a minha falta. Lembras-te de quando costumava dizer-te que ter uma vida consolidada não era uma benção? Que isso levava, irremediavelmente à falta de objectivos pelos quais lutar? Pois eu estava enganado, não na suposição, que ainda se me afigura correcta. Mas na relevância do tipo de objectivo a que, então, me referia. Hoje, rodeado de sorrisos genuínos e de pés descalços, sei que me basta uma camisola de algodão que me vista, ao invés das dezenas que, alinhadas habitam um roupeiro maior que muitas casas. Sei que aquilo que os homens trazem consigo dista muito do que vestem, que a maior das bençãos é ter quem os aguarde, com esse sorriso iluminado de que te falo, esse sorriso maior que procura desesperadamente agradar, e ao memso tempo retribuir e presentear; esse sorriso que em si contem todos os bens, todas as maravilhas, todos os feitos impressionantes do homem... Esse sorriso que, se faltar um dia, nos partirá irremediavelmente ao meio e nos queimará como uma árvore atingida por um raio e fará perdermo-nos para sempre, para longe daquilo que deveriam ser os homens.
Pois foi esse sorriso que se me esgotou. Também eu, que nunca deixei de ser menino, procurei a quem o estender, esperei com os olhos cheios de luz que se concretizasse tudo aquilo de que eu estava tão certo, na minha espera pela vida. Mas havia sempre quem ou algo que diminuia a intensidade das coisas de que eu, para me tornar adulto, precisava ter tido. Havia sempre uma força qualquer, tão fraca ou tão forte como um mero sopro de vento, que fazia com que as luzes se apagassem e eu, com o olhar cego de tão iluminado, de tanto desejar que fosse eu, naquele dia, a receber a benção que iria fazer-me forte para a vida.

Sabes, eu sinto-me um homem forte, sou são, sou até capaz de ser voraz como um animal selvagem, na busca de qualquer coisa que ocupe o lugar desse sorriso que estendi e que não me receberam. Não que tenha sido um pobrezinho, como estes que vejo descalços. Muito menos um miserável, completa e precocemente, pela vida, atirado à morte. Não!... Mas esse conforto que até o mais selgavem dos animais dá às suas crias, esse que está escrito nos olhos com amor, se o tive não fui capaz de o entender, considerando por isso que não me foi dado, pois a sua oferta é inequívoca e até o mais tenro dos seres o recebe e guarda instintiva e imediatamente, como o alimento que irá amadurecê-lo e dele fazer um homem pleno.

Acredita no que te digo, eu sempre me esforcei por ser um homem bom, eu não sei onde ando a falhar... Tentei proporcionar aos meus tudo aquilo que não tive. Por várias vezes enchi os meus olhos de lágrimas ao ver que aqueles alguéns indefesos esperavam tudo de mim. E nesse sentido eu estive lá, eu recebi os sorrisos e os olhares ternos com que eles agraciaram a minha protecção e o meu amor. Dir-me-às porventura que os entenderam, que os guardaram como parte de si e que a transmitirão, futuramente a outros? Dir-me-às? Terei eu sido inequívoco quando dei o meu amor?

Não sei se fui um homem bom, se tenho esse brilho de Deus comigo. Se não fui, entende-me, por favor, entende que também eu não tive quem me envolvesse. Por vezes deixaram-me nu, e ao frio... Entende que se tantas vezes me mostrei cru, indiferente, infiel, desordeiro e voraz foi para me suprir e que na maior parte dessas vezes estive a tentar enganar-me a mim mesmo.
Sei que magoei, que menti, que apunhalei tantas e tantas pessoas que me amaram como eu quis ser amado. Por favor entende, que eu mais não queria do que o conforto doce de uma cama morna, onde os corpos e os olhares se fundem, ainda que feita sob a luz fraca das estrelas que tentam alumiar o deserto, sobre a dureza do chão pedregoso, sobre a contingência da pobreza material, sem os cheiros de finas fragrâncias e sujeita ao pó das tempestades de vento e outras intempéries típicas dos lugares onde parece Deus ter-se esquecido de seus filhos.
No meio deste turbilhão é de ti que me lembro. Quando estou vazio ou me sinto culpado por não ter sabido ser melhor, por sempre ter optado por deixar passar tantas coisas ao lado, como se nada fossem, como se elas não pesassem sobre outros corações.
Não sei porque volto tantas vezes a este lugar onde também as estrelas brilham ao longe e não alumiam que baste... Não sei porque espero, ainda, que sejam os astros a fazê-lo.
§

06/09/2009

Menino

Quem me dera como tu, menino

ser sempre jovem, sonhador

envelhece quem, ao passar pela vida,

dela colhe o pior.

...
Fosse eu capaz menino,

de como tu saber ser,

e pelo amor e carinho

me deixar envolver.
...


Não importa que a pele

se nos dobre como papel

ou que as feições perfeitas

tomem a cor das maleitas.

...

Quem me dera não me ralar

que me caia todo o cabelo

pudesse disso eu rir

e fazer dele um novelo.

...

Fosse eu capaz, menino

de como tu saber ser

seria assim meu destino

o verdadeiro viver.

§

Ao meu grande Amigo António, uma das pessoas que mais, com o seu exemplo, me tem ensinado.

27/07/2009

Por Algo Maior

Estavas na mesma (os olhos profundos calados do que querias dizer). Foi por algo maior, justificas-te perante ti mesmo, olhas-me a querer mais, as mãos a pedirem o que a vida já não te deixa ter, o que não te deixa dar. É assim (encolhemos os ombros sem que nada tenha sido dito) para mim também, a quem, não muito tempo depois de a ti, também a vida impediu de estender as mãos.

Recordas num momento um espaço só nosso que existiu e ficou inerte, como uma casa abandonada, um espaço recheado de dores cavas e de segredos guardados, e de coisas que se deveriam ter mantido proibidas, a bem da inocência; repleto de ânimos leves, de decisões repentinas, de mentiras e desconsolos e outras pancadas violentas típicas das paixões.

Olhas-me e vês-me com o corpo esguio e o cabelo comprido de dezassete – como irás ver-me sempre – que muitas vezes negavas com um soslaio indiferente, desviando os olhos verdes até os pousares num nada, longe de qualquer traço da minha silhueta, da sua sombra sequer, como modo de me repudiar. Eram dúvidas, eram feridas, causadas por outros ou por ti mesmo, de que me querias fazer culpada; era uma mesma vontade de ser para sempre infeliz, de magoar, de fazer chorar para que depois pudesses chorar também. Uma determinação em caminhar para sempre sobre o cascalho árido de uma terra estéril que nunca acabasse, que nunca se escusasse, que nunca obrigasse, para que nunca fosse preciso ceder… Mantiveste o esgar em vez do sorriso, o brilho em vez da lágrima, o músculo hirto da cabeça que não deita, em vez do colo mole, as palmas que não pedem por chuva, que não pedem, porque nada querem esperar.
Vislumbraste tudo isto no sorriso obrigado, que agora tens como agradecido, de hoje; uma reminiscência, não apenas do que foste, como do que poderias ter sido; do que não foste, que não te deixaram ser, por bem de algo maior.

10/06/2009

No Fim

No fim vamos ter que nos encher de coisas boas,
fechar os olhos e tomar-lhes a energia
pegar nas memórias e fazer delas vida
perdido já o corpo do que nos ontens havia.


A vida generosa dá-nos sempre escolha
Perdoa-nos como se fosse a nossa mãe
mil e uma e outra vezes
deixa que nos façamos alguém.


Não é descuido
não é avareza
que o corpo nos caia e amareleça,
não há imperfeição ou negligência
em nada na natureza.

O que trazes vestido para além de teu provisório indumento?

No fim estenderemos as mãos translúcidas
de veios que nos alimentaram como seios
acartando até ao dia em que acabarão nossas dúvidas
o peso das cargas de que fomos esteios.

E se chegada a derradeira hora
em que cruzaremos o mar vasto
a pele caída, os dentes gastos
os pés que não andam, para se ir embora,

poderemos aí ter já cegado
ter sido alvo de penoso erro
mas quem não houver amado
encontrará definitivo enterro.

É esta a forma do homem do mundo
que pensa com o corpo ter ganho a vida
nada tanto o fará fecundo
como o prazo tido até à ida.

§

30/04/2009

Enquanto o mundo repousa e as flores respiram
ao despertar dos pássaros, no horizonte adamascado,
a alma sofre com saudade.
O sangue e as lágrimas transpiram
deste coração castigado.

Nem os dias que vierem
ou os minutos de horas a eito
passarão sem a memória ida
de que já fui Primavera,
farta e colorida,
a explodir do teu peito.


Sete fases do paraíso
– quando os dedos se enlaçaram–
– assomam-se em fantasmas de zombo riso –
canta o rouxinol, desalentado –
calcadas a pés no encerro do pecado.

É fria a aurora dos dias de água
e o sol esvaeceu-se para mais nunca
nos iluminar; decretou da nossa existência atroz praga.
Desde então a mágoa cava o deserto que me junca,
te m' aparta como um véu e a ti me prega, como uma chaga.

§

31/03/2009

Acho que preciso de um mundo só para mim...

Gostaria de to tentar explicar, a ti apenas, que me sabes ler porque também usas um alfabeto sem letras…
Que para me decifrar preciso de saber o mundo, que me acolhe e absorve, e põe à minha disposição a sua contingência.
Vou revirando os olhos até encontrar a posição que me permite ver. Piscos, fixam um ponto que, na verdade, se situa, não defronte, mas atrás do que lhes é dado divisar. O seu cerne não é, contudo, nada nítido. Pelo contrário, é desfocado. E é assim mesmo. É um ponto instável, que não se encontra preso a coordenadas físicas. Além do mais, é invisível à vista que vê, que apenas quando cega do que existe e me induz pode adentrar por essa porta.

Sonâmbula, enxergo aquilo de que não me é dado pousar imagem e que vou decifrando nessa língua estranha que ninguém lê, nem tu, mas também não eu.
E tu sabes, ainda que não comunicasses, também, através dessa linguagem que se nos parece turva – apesar de ser porventura a mais clara para quem a entende – apenas por me olhares nos olhos, que tenho esta nascente própria que me derrama a percorrer uma vida invulgar, mas que desemboca no leito largo do rio que transporta os mortais comuns, essa massa anónima que, por maioria, conduz o destino colectivo dos homens. E para que serve esse presente envenenado senão para me brindar com o ónus das extravagâncias que não podem ser cumpridas?

Compassivamente dizes, uma e outra vez, que é assim, que tenho que ter paciência e aguentar o excesso que me é posto nos ombros. Não me deixas acreditar que sou filha de ninguém, dizes, que toda a gente tem que ser vinda de algum lado. E eu digo sim, vim, mas então deixaram-me órfã ou fizeram-me acreditar em realidades que não existem. Condescende… dizes, nem tudo pode ser assim tão mau.
E quando digo que é, quando te rogo que me creias, quando te revelo, como se fosse segredo em quem alguém pudesse acreditar se lho dissessem, tentas complacentemente desmentir-me.
Agradeço-to, a sério, pudesse eu enganar-me a mim mesma e fazê-lo-ia. Foi por erro – repito – que vim aqui parar. O meu nascimento teve origem numa morte e isso é inconsentâneo com o direito a uma vida feliz. Por causa disso proveram-me com dois braços simultaneamente dextros e canhotos e uma espinha anfíbia, para que estivesse preparada, como uma erva daninha ou um vírus, para sobreviver em ambiente hostil, ou assumir uma qualquer forma híbrida.

Tanto quanto eu, tu sabes que não haveria um único lugar neste mundo que pudesse ser meu habitat. Nunca um lugar material, se bem que pudesse ser prosaico ou mundano. Como o conseguirias? Isto não bate certo, dirias. Bate, pois, sabes bem que sim, é uma questão de linguagem.
Acho que preciso de um mundo só para mim... Digo-to tantas vezes ... acredita ... não contestes, aceita apenas, não me desmintas. Cala a tua benevolência de salvador dos infelizes e dos perdidos e aceita a verdade sem que, para meu bem, me tentes enganar.
§

02/02/2009

Deixaste de me sentir, finalmente. Soubeste ao longo dos últimos anos que eu não estava lá. Finalmente perdeu o brilho, tal era a falta de reciprocidade.

Arruma isso na tua cabeça como quiseres mas a tua indiferença forçada, bruta e, principalmente, passional, não me engana.

Vivo em duas ou três casas estranhas, casas que ninguém conhece, casas que eu perdi. Uma outra, que deveria estar, não está lá. Nunca está. Não lamento o que perdi de mau – talvez por isso, essa casa não apareça - mas o que perdi de bom. E daí as outras. E essas perdas são cravas. A que tu me cravaste não foi mais do que uma martelada já dada por alguém ou por algo. Não a choro por ti, como não a chorarei por ti.

O que é lamentável é ver que aquilo que te engrandecia a meus olhos, não existia, afinal. A pretensa amizade que serve todos os propósitos e, maioritariamente os passionais, essa que não entra em minha casa, era também a tua… e eu não sabia, juro que não sabia.

E sabes, eu cheguei realmente a sentir-te, querias, quiseste tanto, ou disseste-o tanto, tanto, que eu me apaixonasse por ti, que o tiveste. Pura e totalmente, quando também para ti brilhou. Pediste essa possibilidade com todas as tuas forças durante muito tempo. Desejaste-a ardentemente, e foi-ta concedida. Fugiste nesse momento de verdade, para uma vida cujos frutos mais importantes são filhos de acidentes, e da (sempre) minha culpa. O resto foi uma ideia apagada que tu tentaste manter viva, sem dela cuidar.

Acredito piamente e não há que me demova, que foi sempre falta de coragem, ou indo um pouco mais além, o simples facto de afinal, estares, simplesmente, enganado. Agora que tens aquilo que sempre desejaste (q esta imagem te deixasse os sonhos), segue o teu caminho.

Mas segue-o sabendo sempre que falhaste comigo, que é isso o que eu penso, que fui um jogo perigoso e que é isso que te anima a existência nos dias. Substitui-o por outro, com a mesma nomenclatura de objecto de adoração, mas não te esqueças de que é uma pessoa. Não é de ontem que nos conhecemos...

Nestes anos, desde o crepúsculo sobre o Sado, desde o anel, desde o acidente que te matou, por esta ordem, casas como aquela da qual não me lembro aparecem, em diferentes sítios, todas com tectos demasiado baixos para que eu me erga de pé. Casas de olhos verdes e de cabelos claros, de objectos que ofereceste a alguém e nunca a mim. lingerie, relógios caros e batons dior. Casas com compartimentos múltiplos, que podem cair e têm pregos espetados, cada um à esquerda do outro aproximando-se das paredes meias, cada um mais exíguo do que o outro, mais baixo, tenho que ficar deitada e tentar ver o que se passa lá dentro, para saber que posso entrar. Chego a ficar, sobre as lajes de ferro que suportam um telheiro de zinco estreitíssimo e corroído, a fazer companhia aos pombos que se abrigam da chuva que não abranda, à espera, a ver passar oculto por paredes o que não é meu, a ver que não é meu.

Finge que estás a viver por algo maior, ou reconhece quem amas. Assolar-me-ão sonhos de chuva e ver-te-ei de roda da lareira, apenas a ti, a aquecer as mãos, a brindar com tequilla num verão onde nunca fui. Ainda que tenha deixado de te sentir, ainda que o saibas e me tenhas, por isso (assim o julgas e justificas), apagado. Finge que isto é mentira. Eu sei que não é. E não penses que viveste tudo sozinho, eu estive, de outras formas, a sofrer as consequências.
§

26/01/2009

é esta a lição da nova primavera
ela veio aqui dizer-me que o mundo existe,
franco e sóbrio,
segredou-me numa brisa perfumada
tudo aquilo que esquecem
as mentes envelhecidas
das gerações presentes,
que tantas vidas posso eu gozar…

é este o preço a pagar pelo estio
disse-me o tempo a passar pelos dias,
que o mundo é ébrio e fundo como um poço,
não há lugar a perdão
pois cravam-se-nos as falhas
nas rugas da pele e nos delírios do corpo
finda-se-nos a visão infinita
e a doçura dos Agostos.

15/01/2009

Mourning



I hurt and I grieve
And I injure myself
There’s no relief to be found
Nor in sorrow or death

§




07/01/2009

Saudades


Partimos ao final do dia para te levar. Estava quase escuro apesar de não ser noite ainda. Fomos todos atrás de ti, devagar, até lá. Era do dia que fazia, que amanhecera já sombrio e não fez por enganar.

Estava frio por entre as pedras e os mausoléus de mármore, como se a fleuma viesse mostrar a aridez que alastrou pelos corações e que marcou a terra aos olhos daqueles que por cá ficaram; como se o vento, ao agitar as folhas secas de um Outono tardio, se empinasse em revolta, atingindo-nos indistintamente por uma culpa anónima e colectiva, nesse dia em que lá fomos deixar-te.

E nós aguardámos, quedos e desalentados que te entregassem, ainda que não soubéssemos se ainda ali estavas ou se era apenas uma película vazia que jazia, o casaco com que te vestiram para te dares a conhecer ao mundo e aos outros e com o qual encetaste a tua viabilidade na terra efémera e dura. Ainda que agora oco, nós beijámos, amámos e sentimos, nos momentos ledos, o calor do abraço que te traiu.
E mais passa o tempo mais te choramos. Os anos volvem e em cada um, um dia apenas, e assim nunca deixa de ter sido ontem que os pássaros levantaram voo dos álamos magros a meio da noite, desenhando círculos na madrugada, para lembrar uma perda irreparável.


A saudade aumenta a cada desses dias.