31/03/2009

Acho que preciso de um mundo só para mim...

Gostaria de to tentar explicar, a ti apenas, que me sabes ler porque também usas um alfabeto sem letras…
Que para me decifrar preciso de saber o mundo, que me acolhe e absorve, e põe à minha disposição a sua contingência.
Vou revirando os olhos até encontrar a posição que me permite ver. Piscos, fixam um ponto que, na verdade, se situa, não defronte, mas atrás do que lhes é dado divisar. O seu cerne não é, contudo, nada nítido. Pelo contrário, é desfocado. E é assim mesmo. É um ponto instável, que não se encontra preso a coordenadas físicas. Além do mais, é invisível à vista que vê, que apenas quando cega do que existe e me induz pode adentrar por essa porta.

Sonâmbula, enxergo aquilo de que não me é dado pousar imagem e que vou decifrando nessa língua estranha que ninguém lê, nem tu, mas também não eu.
E tu sabes, ainda que não comunicasses, também, através dessa linguagem que se nos parece turva – apesar de ser porventura a mais clara para quem a entende – apenas por me olhares nos olhos, que tenho esta nascente própria que me derrama a percorrer uma vida invulgar, mas que desemboca no leito largo do rio que transporta os mortais comuns, essa massa anónima que, por maioria, conduz o destino colectivo dos homens. E para que serve esse presente envenenado senão para me brindar com o ónus das extravagâncias que não podem ser cumpridas?

Compassivamente dizes, uma e outra vez, que é assim, que tenho que ter paciência e aguentar o excesso que me é posto nos ombros. Não me deixas acreditar que sou filha de ninguém, dizes, que toda a gente tem que ser vinda de algum lado. E eu digo sim, vim, mas então deixaram-me órfã ou fizeram-me acreditar em realidades que não existem. Condescende… dizes, nem tudo pode ser assim tão mau.
E quando digo que é, quando te rogo que me creias, quando te revelo, como se fosse segredo em quem alguém pudesse acreditar se lho dissessem, tentas complacentemente desmentir-me.
Agradeço-to, a sério, pudesse eu enganar-me a mim mesma e fazê-lo-ia. Foi por erro – repito – que vim aqui parar. O meu nascimento teve origem numa morte e isso é inconsentâneo com o direito a uma vida feliz. Por causa disso proveram-me com dois braços simultaneamente dextros e canhotos e uma espinha anfíbia, para que estivesse preparada, como uma erva daninha ou um vírus, para sobreviver em ambiente hostil, ou assumir uma qualquer forma híbrida.

Tanto quanto eu, tu sabes que não haveria um único lugar neste mundo que pudesse ser meu habitat. Nunca um lugar material, se bem que pudesse ser prosaico ou mundano. Como o conseguirias? Isto não bate certo, dirias. Bate, pois, sabes bem que sim, é uma questão de linguagem.
Acho que preciso de um mundo só para mim... Digo-to tantas vezes ... acredita ... não contestes, aceita apenas, não me desmintas. Cala a tua benevolência de salvador dos infelizes e dos perdidos e aceita a verdade sem que, para meu bem, me tentes enganar.
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