11/04/2008

Gente

Subia, íngreme a ladeira, o sol quente a chapar-me as costas, as pernas e pés suados e escorregadios nas saias e nos sapatos a dar mais um passo, só mais um atrás do precedente, seguindo-se mais um a cada um, os olhos atentos aos paralelepípedos incertos.

Deixava para trás o bulício da feira cheia de coisas de gente, usadas e depois vendidas ou trocadas, por outra gente.

Fotografias antigas de antepassados fardados a General, sem pudor dos descendentes que, pela fome de hoje, desses bocados de si se desfizeram; puxadores de portas e gaveteiras manuseadas, abertas, fechadas, onde dedos entalados e choros e sangue pisado de alguém; vasos, vasinhos, vasilhas, cabaças, bibelots envergonhados de tão feios sabem que são; loiça desirmanada, chávenas de asa quebrada, roupa desbotada e sapatos por pés cambados; gente e mais gente, gentinha, gente normal, gente tonta, indigente, cheiro de gente, bocadinhos de vidas de gente, ali pousados nas bancas sem banca do chão, mil objectos frutos da vida da gente.

Calendários de anos passados e posters de artistas fora de prazo, discos riscados e ouvidos múltiplas vezes ou vez nenhuma, vozes de cana rachada a apregoar as t-shirts que escondem com rabo de fora os dvd pirateados legendados em português do Brasil, que agora é o de nós todos; lençóis com presunção a bordados, de tela colada a pincel, toalhas que deixam a fibra e a cor na lavagem, babetes de turco a monte para bolsado de bebé e, claro cuecas com cheiro a elásticos novos, pequenas, grandes, enormes e ultra, para a mulher portuguesa que se preza, soutiens com costas largas e cintas adelgaçantes com proporções dinossauricas.

Livros lidos, emprestados e nunca devolvidos, perdidos, amarelecidos ou com as folhas ainda por cortar a abre-cartas; cartas, também, cartas antigas do tempo da guerra colonial, escritas por homens a suas mulheres e por elas a estes pensando ser talvez essa a última lida, mas todas ali chegadas; cartas de jogo em baralhos incompletos, pratos de parede cheios de mau gosto e alusões a clubes de futebol; castiçais de cristal decerto roubados de alguma casa abastada, escondidos dentro de uma manga suja de vendedor, as salvas de prata debaixo da banca de manta, esperando o comprador certo que já as sabe ali; naperons e bordados feitos em fábrica, aros de guardanapos a necessitarem de ser areados, latas de biscoitos com tampas ferrugentas; brinquedos barulhentos de plástico made in China e rádios CD completamente acabados a reproduzirem roucamente hits de um século passado.

Neste sítio impossível de saber quem é quem, pois as coisas, as pessoas e os cheiros estão todos misturados, onde tudo anda na mão de toda a gente e não na de a quem pertence, subia a ladeira quente de paralelepípedos incertos, os carros e os humanos e máquinas de costura antigas a reclamar o seu não anacronismo, mas o estatuto de antiguidade. Subia de olhos no chão não fosse escapar-me a berma do passeio do pé ou encontrar caca de cão. De vez em quando levantava os olhos para marcar a distância que já levava daquela amálgama de coisas nelas cheias de pessoas; numa dessas vezes fixei o olhar em ti,

deixei-me da gente que passava por dentro e por fora, dos lados do passeio, eu gente também, também suada e decerto também com o meu cheiro a gente. deixei-me do chão pois os meus pés sentiram-se andar em algodão e o meu corpo perdeu o peso ao contemplar aquela visão, imagem de ti. viria a deixar-me da vida, naquele momento ali, assim que acabara de a encontrar...

senti a perturbação do teu olhar decidido, no meio de tanta gente, tanta e tanta gente que há no mundo, num mundo de desencontros e eu encontrar-te a ti.
soube-te assim que te vi.
era ser completo. Era alma adivinhada e encontrada, feita e à tua medida recortada.
A ofuscância do sol do fim da tarde, de feições enganadoras, após o dia sobejamente aquecido não ludibriou a verdade, que viria a preferir-se não revelada.
Enquanto te aproximavas constatei que os teus olhos me atingiam sem possibilidade de mensuração e soube-me pedaço daquele monte de gente, soube-me na terra, na condição dos que habitam, que hão-de amar, hão-de sofrer e hão-de morrer, como no pecado original.
A tua resposta veio uma pena de gaivota voando certeira e suave na única brisa que cortou a tarde, foi-me dizendo sem perguntas minhas que sim e que sim, como se tivesse tinta e do ar fizesse espelho e aquele instante bastasse para escrever a nossa história e deixá-la ali para alguém ler.
Assim que parou a brisa e o calor voltou a apertar e as gentes passaram por entre nós, deixando as suas marcas, os seus cheiros, as suas sentenças definitivas, os seus motivos e as suas vicissitudes. Cessou o breve momento em que se cruzou o nosso olhar e o ar povoou-se de imagens imprevistas, que baralharam o som da melíflua melodia que de ti emanava, viciante, que hoje ainda recordo no longe da memória,
e que ocultaram para sempre o que a alma lutava por nos explicar.

13 comentários:

temporaria_mente insana disse...

Olá Stella,

Que texto maravilhoso... por momentos pensei que já o tinha lido, em qualquer livro... até fiquei confusa.

Sabes aquela sensação, de ler e ver, ao mesmo tempo...

Tens uma carateristica, que eu aprecio muito, alem de escreveres muito bem, nem precisas de imagens, pois as palavras ilustram os textos ou os poemas.

Obrigada, pelo teu comentário. Vou tentar responder.

Um abraço, bom fim de semana.

Stella Nijinsky disse...

Oi MA,

Obrigada pela tua visita. Por acaso, n querendo parecer convencida, acho q o texto tá um mimo!
Beijinhos, bom fim-de-semana!

Stella

ROSASIVENTOS disse...

ah sim que a alma bem luta...luta!

muito bela escrita a tua!! expressivíssima!




a urgência turquesa atravessada do mantra ecoando as canelas dos pneus
fumegando:
e porém talvez futuramente

~pi disse...

OfuscânSias*

nd disse...

Gente!!!!!!!

Hoje é dia internacional do beijo, não tem contra indicações, não vale economizar, ou quardar para depois de amanhã...
No blog beijinhos para todo mundo.

Querida, o post está um mimo sim.
bjs

Manuel Veiga disse...

claro que sim. saudades de ler-te. textos assim límpidos, fazem os grandes escritores.

lí de um fôlego. quero mais...

Joana Roque Lino disse...

as imagens que baralharam o som, na memória... naquele instante, em que os olhos se cruzaram, entrecruzaram, se encontraram suspensos entre partículas de pó e gentes, pessoas, pés, mãos, corações, no meio da vida que corria. ;) um beijinho.

Maria Laura disse...

Como o essencial, o que a alma grita, se pode perder na confusão que nos rodeia. Talvez não escutemos a alma. Talvez não olhemos para dentro.
Extraordinário, o texto!

un dress disse...

gaivotas embrisadas a cortar a tarde

gaivotas que gritam

numa língua virgem incodificada.

palavras que instalam por dentro cenários.





beijO

nd disse...

Querida amiga bom dia,

Vim reler o post, agora com mais calma, passado do dia do bj.
Belo quadro vc pintou aqui, tudo é gostoso, fica difícil destar só uma parte, mas me decidi por:
"soube-me na terra, na condição dos que habitam, que hão-de amar, hão-de sofrer e hão-de morrer, como no pecado original"
bjs

nana disse...

stella....


deixas-me sem palavras,

inebriada de tanto sentir.




..





obrigada.





beijo de longe.

nd disse...

Oiiiiiii!!!!!!!!!!!

Is there any body out there?
Preguiça de feriadão? Vem mais por ai.
bjs

ROSASIVENTOS disse...

onde


nada senão o silêncio:


extensamente


flutuação