07/10/2010

Ver-te

Lembro-me de mim quando me deito na largueza com que me veem teus olhos.

Recordam-me a passagem do tempo, a vida ida, desde a claridade ténue do fim de emissão da televisão antiga, às palavras escassas de agora, largadas entre os sulcos que passaram a moldar-nos as feições e a aceitar com indiferença as cicatrizes que nos cresceram no peito que, à custa de provações sucessivas, já não ameaça rebentar, como outrora.

Através deles revejo, em sonho recorrente, dois momentos que me pulsam, intermitentes, nas fontes. Imagens suspensas que ficaram no passado, como fotografias hirtas ou papel amarelecido: uma aurora, por entre as urtigas e o cheiro das flores rebeldes da Primavera de vento ainda fria, as palavras como sopros, a roçar limites, e o coração leve de pássaro em voo livre; e um ocaso, viagem sem regresso aos constrangimentos, às vidas, às contingências, no dia de estio generoso e longo, da lua alta e do mar de prata, onde as palavras proibidas foram abafadas e caladas para sempre. Trazêmo-las ainda hoje, a gritar, caladas, dentro do peito.

Perdemo-nos algures entre a descida da encosta, na manhã luminosa dos dezoito, cujos minutos duravam uma vida inteira, como acontece com os corpos novos, e a consumpção intensa das horas tardias, parcas, de beijos ânsios de vontade e de medo, de vintes quase passados, onde se começam a pagar os pecados.

raramente me lembro de que já fui eu:
ver-te é lembrar-me de mim

2 comentários:

João Norte disse...

Aos dezoito é uma boa idade para nos perdermos.

Um abraço

Anónimo disse...

Da aurora ao ocaso, há um castigo para o qual nao existe escapatoria: Acordar todos os dias, ate ao fim da vida, assolado por memorias que teimam em nao perder cor e definiçao (como acontece com as fotografias antigas).